Os anos 90 constituíram um período em que o cinema experimentou uma espécie de “recuo” após duas décadas de blockbusters no cinema americano, de uma abordagem espetaculosa, cênica, a uma dimensão humana mais trivial e primordial. A preferência pictórica era até então pautada pelo exagero das formas, que conhecemos no desenvolvimento histórico da pintura pelo nome de maneirismo, classificação dada a um período de ressignificação das convenções formais após seu esgotamento. Nome exportado à história do cinema, o maneirismo pode ser visto em quase todo o cinema de terror e mesmo no cinema de ação até o ocaso dos anos 80. A preferência temática e arquetípica, junto a isso, era pelo que o crítico literário canadense Northrop Frye chamou de imagens demoníacas, aquelas próprias ao modo irônico de representação, modo base da modernidade, em seu ímpeto no pôr abaixo algumas verdades sagradas da natureza humana ou da sociedade conforme estava assentada até então – veja-se os filmes políticos de Oliver Stone, em sua reencenação e reconsideração de eventos da história recente americana, ou os filmes de ação e suspense de Brian De Palma, em sua remodelagem de formas e convenções do cinema que foram feitas para remodelar as personalidades humanas, suas psico-patologias reprimidas cujo embrião, assim como as próprias formas, já estava em Alfred Hitchcock apenas aguardando para experimentar esse desenvolvimento.
O sucesso de Titanic (1997, James Cameron) no cinema mainstream americano foi observado por Jean-Marc Lalanne, crítico da tradicional revista francesa Cahiers du Cinéma, como a demonstração de uma tentativa de retorno de realizadores e público a um “sonho neoclássico”, um sonho em que a natureza humana bastasse mais que artifícios do próprio filme. Titanic trazia um enredo clássico e instintos humanos singelos e imaturados que o cinema posterior tendeu a diluir ou ironizar. Era uma versão de Romeu e Julieta, com seu romantismo em estado bruto, com o duelo de classes e famílias assumido ao modo escancarado, em meio a um apocalipse, ao fim de mundo de que o mythos tanto gosta; dois jovens descobrindo o instinto humano básico do amor enquanto lutam pelo instinto humano tanto mais básico da sobrevivência.
Mas algo que no cinema europeu “de arte”, este que tradicionalmente já tinha uma preferência pelo íntimo e doméstico em lugar do espetaculoso e épico, possibilitou que essa esfera humana mais íntima e mais simples fosse explorada em suas maiores proximidades foi a chegada de novos formatos que vieram se mesclar ao cinema: o vídeo-arte, a vídeo-instalação, a filmagem caseira, o digital. Tais formatos trouxeram uma proliferação do documentário ou da abordagem documental, no aumento da disponibilidade de meios para representar o cotidiano e filmar in loco, ou trabalhar com imagens históricas de arquivo. O digital, que só iria se popularizar de fato nos anos 2000, mesmo ainda em sua inserção em pequenas etapas da produção, permitiu uma facilitação nos processos de filmagens tanto externas quanto internas. A câmera digital, quando seu uso foi assumido, possibilitou muito mais facilidade em filmar com a câmera na mão, técnica que era querida e buscada desde o neorrealismo italiano e a nouvelle vague francesa em sua característica de filmar nas ruas para estar presente no mundo em imediato, instantâneo, em relação às câmeras de filmagem em película pesadas, nada práticas e de caros processos. Um diretor como o iraniano Abbas Kiarostami, cujos filmes necessitam dessa fusão de cinema encenado e documental, quase completa confusão entre ficção e realidade, passaram a valer-se muito do digital no fim dos anos 90 para levar a cabo suas potencialidades. No cinema francês, com a herança da já mencionada nouvelle vague, isso não foi menos verdade, e os diretores franceses tornaram-se os pioneiros de algumas tendências e de algumas revoluções na maneira de fazer cinema.
A trilogia que ora começamos a discutir, obra francesa do diretor polonês Krzysztof Kieślowski, apesar de não ter sido realizada em digital, ou mesmo por conta disso, permite observar o desejo por trabalhar com algumas características na maneira de representar que o digital proporcionaria definitivamente, nos anos seguintes, como uma mudança de paradigmas no cinema. Destarte, permite termos ideia de como aquele momento de transição na representação deu corpo a uma sensibilidade específica que não deixa de ter relação com seu momento histórico e com a maneira pela qual diretores como Kieślowski o sentiram.
Qualquer um que olhe de soslaio para essa trilogia bem famosa do cinema francês dos anos 90 perceberá que ela busca extrair a significação de sua organização pela combinação das cores da bandeira francesa e dos ideais da Revolução. Mas, seguindo a tendência de voltar-se ao íntimo, ressignificando no modo mimético-baixo (o da representação de carácteres humanos das classes baixas em sua vivência comum) as formas que outrora estavam estabelecidas na história e, sobretudo, em um passado épico, os filmes buscarão partir da relação que está previamente estabelecida em seus títulos para propriamente reencontrá-la no cotidiano de franceses comuns, representantes de diferentes classes, ao sabor do reencontro de sentido – de um sentido que até então estava perdido para essas pessoas.
A Liberdade é Azul (1993), primeiro filme da trilogia, mostra a vida de Julie após perder marido e filha em um acidente de carro. Julie faz parte de uma certa burguesia francesa dos círculos cultos: seu marido é reconhecido como um dos compositores mais importantes daquele tempo. Após passar por esse reset, Julie resolve propriamente recomeçar do zero, colocando a casa em que sempre viveu com a família à venda e indo morar sozinha em um conjunto de apartamentos de baixa renda no centro de Paris. Mas é um recomeço que não objetiva chegar em outro lugar. Julie diz que não mais se importa com nada, que não quer mais se apegar a nada nem ninguém para não sofrer com outra perda. O filme torna-se o percurso de uma série de encontros fortuitos e desencontros ainda mais fortuitos, eventos e pessoas que momentaneamente exercem atração sobre o interesse da mulher e parecem se dissolver logo em seguida.
Entramos, assim, em uma representação do banal na vida de uma mulher ao sabor do que fora iniciado por Gustave Flaubert em Madame Bovary. Mas o filme de Kieślowski, ao invés de manter essa banalidade em estado bruto a fim de que seja transfigurada pela linguagem, pela maneira como uma encenação sofisticada a reunisse, como pregava o método de Flaubert para a escrita, quer a todo momento relacionar o fortuito ao determinado, ao vislumbre de um ex-machina na maneira como a cor azul cria uma isotopia que vai envolvendo a personagem em uma rede de melancolia, bem como em alguns momentos de transe quase místico (de um místico, porém, certo modo mundano). Trata-se tanto de símbolo quanto de um elemento organizador da imagem, algo que confere a ela uma dimensão plástica mais específica e vai encadeando e estruturando um filme de estrutura inicialmente aleatória à aparência.
Seja no lustre de cristais azuis, um dos únicos objetos que leva de sua antiga casa e pendura na nova, que constantemente prende seu olhar e para o qual quem a visita também é sempre atraído; seja na imensidão da piscina azul na qual pratica exercício diário, sempre ao entardecer para ressaltar a cor contra o crepúsculo; seja, mais propriamente, na constante atmosfera da luz externa dos dias nublados que invade os ambientes... a cor azul está lá atuando como uma imagem própria, como condutor de ritmo, e a imagem do quadro geral concede-lhe privilégio. As cenas de A Liberdade é Azul poderiam facilmente ser confundidas com filmagem de uma câmera digital em seus primórdios, pois a imagem precisa assumir um aspecto mais cru, mais chapado, uniforme e monótono, ao sabor da monotonia pela qual caminha Julie, e deixar-se sensibilizar apenas por essa luz que é, na maioria das vezes, da atmosfera externa, tão perfeitamente destacada que faria pensar ter sido inserida por um colorista na pós-produção. Mas percebe-se então a especialidade da película, justamente por deixar que essa luz sensibilize naturalmente o filme, que tudo seja bastante natural e cotidiano tal qual a obra busca ser, e nota-se a habilidade da equipe aqui envolvida em trabalhar com esses aspectos propriamente na produção, no manejo das condições na própria gravação.
Julie olha para o lustre de cristais azuis e tem aquilo que se nos informa, pela elipse na imagem, como um momento de ruptura e recomeço; o mesmo que se manifesta a partir de outros movimentos, quando alguém diz algo que remete ao seu passado e impede-a de “desfrutar” dessa liberdade solitária e dúbia – a liberdade para poder não se importar com nada; ou quando vê uma senhora idosa sozinha a tentar desempenhar uma tarefa muito simples, quase ridícula, como colocar uma garrafa de vidro no local de reciclagem, mas, após grande esforço, não consegue fazer mais que deixar a garrafa ali enfiada sem cair por inteiro no recipiente, pois faltam-lhe forças e ajudas. Essa relação que Julie faz com sua própria vida, com o fato presente de estar sozinha e a incerteza da perspectiva futura, a possibilidade de também terminar sozinha e sem amparo, bem como a igual nossa incerteza, talvez dela própria, sobre a perspectiva desesperadora ou confortável pela qual encara isso (a liberdade “blue”, palavra que os falantes da língua inglesa usam para denotar a tristeza, é boa ou má, afinal?), é-nos informada por processos psicológicos de milissegundos naquelas elipses que anseiam por um lugar de repouso – por uma epifania?
Epifania, sim, pois a maneira que o filme encontra para resolver-se é muito mais interventora que tudo até então. Essa epifania vem apenas ao fim, quando a dimensão simbólica encontra a dimensão denotativa (de significação natural) dos atos de Julie e ambas fundem-se definitivamente para dar-nos uma abertura ao mundo extraordinário que estava ali à espreita naquele ordinário.
“Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse o amor, seria como um bronze que soa ou como um címbalo que tine. Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse o amor, eu nada seria. (...) O amor é paciente, o amor é prestativo, não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” (1 Coríntios 13, 1-2; 4-7).
Assim repete o coral com a sinfonia do marido que fora finalizada pelo novo companheiro de Julie, enquanto a montagem nos repassa pessoas que Julie encontrou no caminho e atos de doação que realizou, não de bens materiais, mas daquilo que tinha ao seu alcance, às vezes até mesmo da consideração estendida a essas pessoas como cúmplice de seus problemas. Sorrateiramente, Julie passara pelos “quatro amores” de que fala C.S. Lewis como o caminho natural das relações humanas para Deus. Esteve lá o amor Storge (afeição), amor de identificação humana por pessoas com as quais não temos relações, quando entrega como presente ao jovem que viu o acidente de carro o crucifixo do marido e interfere na vida desse jovem de algum modo. Esteve lá o amor Philia (amizade) na relação que desenvolve com sua vizinha Lucille, julgada por todos por ser prostituta e stripper, que encontra apenas em Julie, alguém já desprendida das amarras convencionais das aparências e sem qualquer compromisso de agradar quem seja, um amparo e uma verdadeira ajuda mútua para os momentos difíceis. Esteve lá o eros (amor romântico/erótico) na relação com Olivier, um amor que fora propriamente bastante paciente. Esteve lá, por fim, o ágape (caridade), o amor de contornos extraordinários, de algo ainda hoje tão irracional para a sociedade quanto o amar os inimigos que prega Cristo. Julie acolhe a amante do marido porque sabe que o filho que está esperando é seu fruto, sua continuação, e que os erros do passado não fazem mais sentido em vista da nova situação.
Manifesta-se então a característica mais própria de Julie, essa identidade que ela esteve procurando durante todo o processo e que não conseguia encontrar, mas que sempre esteve exercitando a cada passo, praticando na própria ignorância e desinteresse: ser boa, simplesmente. “Você é boa”, foi o que o marido mais contou sobre a esposa à outra mulher. Julie tem apenas um vislumbre, um momento de anagnórise (o “reconhecimento” da personagem sobre sua própria situação que vem da tragédia grega clássica) que nos é informado não de maneira explícita ou definitiva, mas apenas pela sugestão da montagem e da encenação nesse final. Ela, que desde a morte do marido acreditou-se fraca e impotente demais até para cometer suicídio, acreditou que apenas deixava-se levar por letargia, percebe então que não retirou a vida a si ou a outros (simbolicamente, como poderia fazer deixando de ouvi-los, de entender seus próprios problemas, como poderia ter feito com Lucille caso tivesse se juntado aos outros para assinar sua petição de expulsão do condomínio) porque o que flui nessa mansidão e compassividade é o amor por aquilo que a vida tem de mais sutil e escuso.
Assim Kieślowski, que destilou em suas entrevistas uma visão pessimista sobre a humanidade e aqueles tempos incertos do fim do século XX, sobre o lugar ao qual as mais recentes mudanças sociais levariam, mostra aqui uma esperança que se infiltra nas próprias lacunas da significação na vida, e por conta delas mesmas. Para um pessimista como ele - “O futuro é, para mim, um buraco negro e isso me assusta”, disse certa vez -, nada poderia estar muito arranjado de antemão, senão acontecendo nesse próprio devir em que nós torcemos para que os eventos mais insignificantes se arranjem em uma cadeia de sentido e que a bondade, essa bondade que Julie pratica como algo semi-consciente, mas bem estabelecido, prevaleça sobre o aleatório. Torcemos para que, ao fim de nossas vidas, tudo o que, ao menos, outros possam dizer sobre cada um de nós é: “Você é boa (bom)”.
Noto, porém, que isso faz com que o diretor lide melhor com o percurso quando respeita o passo lento da naturalidade, quando faz o sentido ser propriamente encontrado sem precisar ressaltar um elemento como símbolo aparente. Isso faz com que haja um certo descompasso. O lustre azul e a piscina azul são muito menos significativos, uma vez que forçados por essa mão demiúrgica, que o torrão de açúcar que Julie mergulha no café e é filmado pela câmera em plano detalhe com sua brancura a ser invadida progressivamente pelo negrume da bebida, enquanto ouve-se ao fundo a música do marido falecido que está sendo tocada por um flautista ambulante que acabou de se colocar fora do café. Esse é um exemplo do encontro perfeito entre a conotação e a denotação, entre o simbólico e a plasticidade da imagem e, com isso, entre determinação e acaso - aquilo que vem como um certo elemento ex-machina (o flautista chega literalmente de carro, desce, senta ali e começa a tocar, como se tivesse chegado no momento preciso para causar aquele efeito sobre Julie) encontra um ato corriqueiro como esse de colocar o açúcar no café, e então podemos, a partir dessa denotação sugestiva do contraste de cores, estabelecer uma possível conotação: a paz de Julie sendo abalada, talvez? Sua inocência dando lugar a um reconhecimento de que o mundo conspira para que ela não se esqueça do marido? Sua inocência em buscar uma abertura a Olivier sendo questionada?
Kieślowski entrega, nessa cena, uma significação poderosa justamente por se encontrar nesse eixo diretivo do percurso do filme, do amor que é encontrado nos buracos negros, nas reminiscências, na disjunção dos elementos, não em uma conjunção muito arquitetada para tornar o azul como símbolo muito evidente ou mesmo limitar as possibilidades de leitura desses símbolos do azul e de outros elementos à dimensão psicológica mais imediata e óbvia que se encontra à mão. Nesse cinema que promove uma transição para o futuro digital, que se faz sob a especialidade de estudar o cotidiano naquilo que passou despercebido, naquilo que muitos negaram, permanecer no passo natural, refazendo de uma outra maneira aquilo que foi outrora buscado pela nouvelle vague, que anteriormente fizeram à sua maneira Rohmer, Truffaut, Godard, e que logo também o faria alguém como Kiarostami, e nas outras décadas alguém como Hong Sang-soo, é o mais essencial - e, neste filme em que o sentido final precisa mesmo dessa percepção de uma trivialidade da vida a decorrer monotonamente em uma aparente falta de sentido inicial, é o necessário.