Quão surpreendente é chegar a este filme que encerra uma trilogia simbólica, de relações simbólicas entre personagens e elementos mais imediatos em cena, e topar com um trabalho bem mais direto e objetivo, que não tem a necessidade, presente sobretudo no primeiro filme, de abstrair qualquer elemento do enredo cotidiano para uma apreensão psicológica/mística criada em torno da cor, mas que respeita muito mais as relações triviais em cena que fazem a história andar – nos termos de Aristóteles, é mais mythos ou fábula (sucessão de eventos) que dianoia (o que se quer dizer ou significar com os eventos), no sentido de que a fábula não precisa parar para entrar a mostrar a dianoia, os movimentos do mundo não precisam curvar-se a intelectualizações, antes a dianoia manifesta-se apenas pelo todo da fábula, permite-se arriscar ser colocada em uma definição apenas ao fim do percurso de cada personagem. As situações parecem ter mais peso e assertividade, porém, ao mesmo tempo, mais naturalidade, como se fossem livres para simplesmente existir, tal qual o juiz aposentado que passa seus dias a espionar os vizinhos simplesmente existe ali em sua casa com seu aparato muito físico, mundano e praticamente livre de motivações, à espera de Valentine.
Valentine é, ela mesma, uma mulher muito mais comum e sem camadas em relação a Julie ou Karol, protagonistas dos filmes anteriores. Não há propriamente uma dificuldade que ela atravesse, uma perda de relações com alguém ou com uma vida pregressa como fora para os outros dois: o que ela vivencia é, em verdade, um adicional, o exercício de uma fraternidade a mais no encontro com este juiz aposentado que, apesar da inicial aparência de asquerosidade na espionagem que faz das conversas telefônicas dos vizinhos, dá a ela a oportunidade de exercitar sua fraternidade (isto é, seu laço com outros) podendo pensar nas relações humanas e no que mais vale para cada um, como quando decide não contar ao homem da casa ao lado que está tendo a conversa com sua amante ouvida por ver que ele tem uma bela família, uma esposa e uma filha que o amam. A relação mais profunda, no entanto, é com o próprio juiz: ela dá ao homem até mesmo a oportunidade de passar por uma purgação, quando apenas seu desejo de fazer o certo (e o desejo súbito que o homem sente de levá-la novamente à sua casa, de ver seu rosto alegre) leva-o a confessar seus crimes aos vizinhos.
Assim, Valentine é uma síntese perfeita dos outros dois protagonistas, tal qual o amor (caritas, caridade) é aquele que engloba e subsume as outras virtudes teologais com as quais a trilogia não deixa de estabelecer relação: fé e esperança. Julie, em A Liberdade é Azul, passa o filme todo imersa em uma falta de sentido ao sabor de sua perda de fé na vida e nas relações humanas, para descobrir apenas ao fim que praticava, no percurso, atos de amor e que o amor é capaz de redimi-la – a liberdade para desacreditar converte-se na liberdade para crer. Karol, ao contrário, um holy fool de um percurso tragicômico, conserva uma esperança de que pode dar a volta por cima e recuperar a dignidade de sua vida após a separação da esposa, esperança que Mikolaj, o outro polonês que conhece, perdeu na vida como um todo, e que Karol ajuda a recuperar. A igualdade entre os personagens, porém, igualdade que se manifesta tanto nessa recuperação quanto nas perdas – ironicamente, Karol dá o troco na mulher e fá-la perder tudo e ir parar na prisão –, coloca uma esperança que é incerta, que pode ser para a futura prosperidade ou amargura, como é a esperança que Karol mantém quando, ao fim, olha Dominique pelas janelas da prisão e percebe que ela ainda o ama. Não descobrimos já no segundo filme que o amor vencera novamente, apenas neste terceiro, em que Karol é resgatado junto com a esposa, com quem, desta feita, reconciliou-se, do acidente de barco.
Valentine é essa mulher que já pratica, conscientemente, atos de fraternidade desde o início. Ela conhece o juiz apenas porque atropela sua cadela e recusa-se a deixá-la para morrer no meio da rua, ou mesmo abandoná-la quando o homem não a quer mais. Valentine leva um cotidiano simples e feliz de quem não perdeu a fé na vida, e possui uma esperança que a leva a suportar algumas coisas – seu namorado que mora em Inglaterra, com quem pode conversar apenas por telefone, mas a quem mantém-se fiel e parece viver o relacionamento com toda a cumplicidade devida, mostra-se possessivo e quer controlar sua vida mesmo que à distância, o que ela leva sem revolta porque possui essa fraternidade, esse cuidado em relação às pessoas. Se o final do percurso coloca, para ela, alguma especialidade, é essa conversão “sobrenatural” que se opera do tema inicial do filme a um próprio das virtudes teologais – quando o juiz permite-lhe estreitar esses laços humanos que não podia ter, pois que se relacionava antes apenas com esse homem distante e passava pelas pessoas apenas como uma imagem para anúncios, que é com o que trabalha, a fraternidade transforma-se propriamente em amor (caridade).
Quão mais surpreendente que a naturalidade e a objetividade, no entanto, é perceber que essa encenação mais direta e esse uso aparentemente mais livre da cor vermelha servem a um filme tanto mais misterioso, com um suspense que o permeia do início ao fim, e místico como nenhum dos dois filmes anteriores, com cenas construídas em um interesse muito próprio em si mesmo, em seu próprio acontecimento presente, mas que conseguem nisso abarcar acontecimentos e outros personagens muito distantes no espaço tempo. Um exemplo é a cena da conversa que Valentine e o juiz estão tendo no teatro após a apresentação desta. Aquele cenário de muitas fileiras de poltronas vermelhas e paredes vermelho-vivas, oferecendo um destaque, ao mesmo tempo que um engolfamento aos dois, cria uma zona mística própria para a evocação de “fantasmas” que acontece – o fantasma da mulher que o juiz amou, mas também de quem ele foi, da relação que possui com aquele personagem que visualizáramos em cenas paralelas (Auguste, o jovem apaixonado que descobre a traição da namorada), que nos permitem ver que o juiz é aquele jovem na velhice materializado, que os dois, cruzando as barreiras do tempo, estão ocupando o mesmo espaço naquela cidade, de forma que o momento passado presentifica-se novamente naquele teatro: um travelling rápido da câmera presentifica o momento em que os livros do juiz ainda jovem caíram escada abaixo daquele teatro, conforme a história que ele está contando, gesto que já víramos acontecer em outro ponto da cidade com Auguste. Cenas assim lembram muito o cinema de David Lynch, contemporâneo a este de Kieślowski.
Aquilo que acontece dentro do universo deste próprio filme, os duplos que se estabelecem e se cruzam – o juiz e Auguste, sua-esposa e Karin, os relacionamentos de Valentine com seu namorado, alguém que tenta controlar sua vida à distância pelo telefone, e com o juiz, alguém que ouve as conversas pelo telefone mas apenas para analisar e entender, sem tentar controlar ninguém – atuam como espelhos dos duplos maiores que se formarão em relação aos outros dois filmes, mostrando, ao fim, que os espaços deste filme, nessa sua naturalidade, são como que uma zona mística para o encontro de todos esses homens e mulheres unidos de alguma forma pelo destino.